Sou acusado de subtrair o encantamento do amor desde 1976.
Na época achava como todo mundo, que ninguém podia ser feliz sozinho e que, portanto, o
essencial era acertar na escolha do parceiro. Como essa opção decorre de um ato racional, fui
acusado de tentar impor rigor científico a algo que deveria acontecer por meios mágicos, pelas
flechadas estabanadas do Cupido.
Sou médico, não poeta, de modo que é meu dever dissecar os temas que estudo. Analisar os
sentimentos não significa menospreza-los.
A maioria dos que se ressentem do fim do romantismo só o experimentou na fantasia. Poucos
viveram um amor pleno, derivado do encontro de sua metade, ou compartilharam com ela o
mesmo teto. Quantos conseguiram construir juntos uma família sadia e se manter cúmplices,
amigos, amantes, tudo ao mesmo tempo? E quantos sonharam com essa sintonia enquanto
amargavam no dia a dia os dissabores do convívio com alguém que não o completava?
Parece que, menos do que a paixão romântica, o que essas pessoas temem perder são os
sentimentos conflitantes que as envolvem. Lamentam o fim das dores de estômago, da sensação
de vazio, das lembranças que a trilha sonora dos desencontros evocam. Choram o fim de algo que
trouxe mais sofrimento do que prazer e alegria.
O que tenho testemunhado em mais de trinta anos de carreira me faz acreditar que caminhamos
para uma época de ouro. O conceito das metades começa a ceder espaço a uma concepção mais
madura: de que somos unidades. Esse avanço deve ser encarado com alegria, pois nos leva para
mais perto da verdade. E, quanto mais próximos da realidade, maiores nossas chances de
encontrar a felicidade. Ainda que o sentimento de que somos fração nos domine, devemos nos
esforçar para nos transformarmos em unidades.
A independência, a descoberta de como é prazeroso passar um tempo sozinho e outros tipos de
convivência nos ajudam a compreender nossa condição de unidades. Isto é ótimo, pois abre
caminho para novos paradigmas amorosos: em vez de metades que se fundem indivíduos únicos
que se aproximam. Os novos relacionamentos vão se basear no respeito, na admiração, na
confiança mútua, no encantamento sexual e no fascínio de cada um pelo jeito do outro ser.
Ternura vai existir sempre.
Muitos elementos racionais estarão envolvidos nesses encontros – será que, de forma camuflada,
não foi sempre assim? Porém, nem por um minuto imagino que eles sobrevivam sem ternura, sem
os momentos mágicos de completude e de plena harmonia que sempre caracterizaram os sonhos
românticos.
Ao contrário, acredito que seremos finalmente capazes de vivenciar aquilo com que, até hoje, só
fomos capazes de sonhar.
A introdução explícita da razão nos processos de escolha amorosa não é um fator negativo nem
diminui as chances de o casal viver todas as emoções relacionadas ao amor.
Aliás, não creio que exista antagonismo entre emoção e razão. Não entendo porque as pessoas
insistem em pensar dessa forma. Talvez seja o meio que encontram de passar um verniz de dignidade nos próprios desacertos: se
me encanto com alguém com quem não me afino e com quem só consigo viver às turras, deve ser
porque o amor é mesmo irracional.
Elaborar um consolo para seus erros tem nome.
E isso sim, é racionalizar.
Flávio Gikovate
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